Causos de Aviação – Little Hangover

15/02/2013


 

O ano de 1970 foi particularmente difícil para o pessoal da Turma de 68 EPCAR, aliás, o ano de 1970 começou a azedar já no final de 1969 com a troca de comando da Escola e a notícia do desligamento em massa na turma, ou, se preferirem, a não renovação das “Bolsas de Estudo”, através da famigerada COBOL (Comissão de Bolsas). Nem o inacreditável GRESB (Grêmio Recreativo e Escola de Samba Sentados na Boneca), uma manifestação pública de alunos de uma escola militar pelas ruas de Barbacena, em plena vigência do AI5, pode aliviar a tensão do momento.

Aquelas férias foram as piores de que tenho notícia, foram dois meses olhando ansiosamente a chegada do carteiro, torcendo e rezando para que ele não trouxesse o famigerado telegrama convocando-nos para retornar à Escola a fim de efetivar o desligamento.

Metade da turma foi alijada, os critérios para isso? Muitos, inclusive a total falta absoluta de qualquer critério, simpatias e antipatias fizeram parte dessa injusta seleção. Injusta principalmente se levarmos em consideração as dificuldades que todos tivemos que enfrentar para sermos admitidos: exames psicológicos, físicos, de saúde e de conhecimento intelectual, uma verdadeira maratona que levou quase dois meses entre testes e a angustiosa expectativa dos resultados, tudo isso para que, com uma simples penada, em alguns poucos minutos, todos os nossos sonhos fossem levados de roldão e sem chance de reclamação. É...  Eram tempos bicudos aqueles!

No início do ano letivo o pessoal foi voltando silente, machucado, algo do antigo encanto fora quebrado, creio que para a maioria de nós foi o primeiro contato com as injustiças que a vida nos prepara. Ressabiados tomamos conhecimento das surpresas do currículo preparado para o terceiro ano, ano que pretendíamos nos renovar psicologicamente para nossa meta final, o avião, cujo curso nos aguardava logo ali no horizonte quase visível de 1971.

Em 69 havíamos terminado o quarto e último volume da coleção dos livros de física PSSC (Physical Science Study Committee), para o ano que se iniciava não havia livros disponíveis, estudávamos através de apostilas elaboradas na USP e impressas na própria Escola denominadas “PSSC - Tópicos Avançados”. Esses Tópicos aprofundavam o estudo de Física Quântica, que iniciamos no ano anterior, eram os chamados “Sistemas Quânticos e Estrutura dos Átomos”, analisávamos o modelo planetário de Rutherford que os átomos apresentam. Eram uma turba de prótons, léptons, mésons, fótons, méson pi e méson mu, tudo muuuuuito complicado!

Em matemática seguíamos com o já conhecido livro cor de “jerimum” do SMSG (Science Mathematics Study Group), agora mergulhados nos sistemas de matrizes, principalmente num tal de teorema abeliano, homônimo que me levou a repudiar o nome que meus pais me deram na pia batismal. Pô Xará! Aquilo era muito chato!

Quando nos encaminhamos para receber o material didático, entre todo o material, nos entregaram três alentados volumes de “Noções de Geometria Descritiva de Virgílio Athayde Pinheiro”. Surpresos nos perguntávamos se eles pretendiam, em apenas oito meses, ministrar toda aquela matéria. Aquela infinidade de retas e semirretas, tudo parecia uma coleção de ideogramas rebatidos em épura. Tenho que ser honesto nesse momento, eles não ministraram toda a matéria, mas fizeram o possível, tornando nossa vida no 30 ano um verdadeiro inferno.

Tendo em vista o curriculum preparado, as notas dos dois primeiros bimestres foram um arraso, só não havia notas negativas porque não fora previsto no sistema de graus essa quantificação. Partimos para os dez dias de férias de julho decididos a preparar nossa família para eventuais surpresas desagradáveis, muitos buscaram informar-se acerca de outras carreiras, na expectativa de ter de prestar vestibular ao final do ano. Eu até emprego de assistente de professor de educação física havia conseguido no colégio onde cursara o ginásio. Voltamos a coletar informações acerca das provas do antigo art. 99 no colégio São Paulo em Niterói, tábua de salvação para muitos.

Retornamos das férias ainda mais desiludidos do que quando chegamos no começo do ano. Para alguns o encanto havia acabado completamente, haviam tomado a decisão de seguir outros caminhos, que não na FAB e para isso já se preparavam. Esse impacto só não foi maior devido a uma mudança no planejamento dos exames de saúde a que deveríamos nos submeter para poder seguir para o CFPM (Centro de Formação de Pilotos Militares).

Naquele ano, ao invés de toda turma ser enviada ao CEMAL (Centro de Medicina Aeroespacial) no Rio de Janeiro no final do ano, decidiram que uma classe, cerca de trinta alunos, iria por semana para o Rio, saindo na sexta-feira, após as aulas, chegando no Rio à noite e no dia seguinte, sábado, às 07:00 hs apresentar-se, fardado e em jejum ao CEMAL no antigo prédio do Ministério da Aeronáutica no Castelo, preparados para uma bateria de exames de saúde.

Os que não fossem do Rio que se virassem, a sorte da paulistada, gauchal, aratacal e camofal foi a enorme hospitalidade carioca. Nossos amigos do Rio carregaram para suas casas dois a três colegas que não teriam onde ficar. Eu fui presenteado com a acolhedora recepção na casa do mestre Rego em Ipanema.

O exame médico foi outro massacre, inúmeros casos de miopia, hipermetropia e outras “pias” menos cotadas, até um caso de daltonismo encontraram no pobre Calciolari, isso depois de todos os exames que nos tivemos que submeter para entrar na Escola. O aluno primeiro classificado da turma foi reprovado no eletroencefalograma, só de raiva ele prestou vestibular em São Paulo no CECEM, no CECEA e no MAPOFEI e, dizem que passou em todos.

Sinusites então foram aos borbotões, três em cinco alunos foram reprovados por esse problema. Diversas lendas, crendices e benzeduras apareceram para solucionar esse mal. A chamada cabacinha do nordeste, ou buchinha do norte era quase que moeda corrente entre os alunos do terceiro ano. Tornou-se uma visão comum, ao se andar pela varanda dos apartamentos, ver colegas com a cabeça coberta e a cara enfiada em infusões fumegantes, aspirando avidamente aqueles vapores como se fossem a última palavra em medicina. No dia seguinte eram vistos com a cara inchada, os olhos injetados, como se tivessem chorado toda a noite, mas a danada da sinusite continuava lá, até a última esperança que era a dolorosa operação de raspagem, a que muitos se submeteram, por conta própria, para depois solicitar nova junta de saúde.

Mas a chegada dos resultados dos exames de saúde, alguns já aprovados, outros com problemas solúveis deu um novo ânimo ao pessoal, era inadmissível haver passado por tantos obstáculos e agora, já dando até para sentir o cheiro da gasolina do avião, ser desligado por causa de uma simples geometria descritiva, ou uma reles física quântica. Tomados de brios debruçamo-nos sobre os livros decididos a não sermos derrotados por essas dificuldades.

A situação chegou a tal ponto que às vésperas da prova de descritiva para o terceiro bimestre, na madrugada, todas as luzes das salas de estudos dos apartamentos do 30 ano permaneciam acesas. Lá pelas tantas alguém perdeu o controle e saindo para a varanda gritou a plenos pulmões: — “Arreeeeeeeeego!” Aquilo como um comando deu início a um frenesi alucinado, todos os alunos saíram para a varanda e durante alguns bons minutos puseram-se a berrar, a fim de aliviar o stress. Assim como começou a balburdia acabou, mas o fato impressionou aos oficiais e professores da Escola e até muitos moradores das vizinhanças que se assustaram com a gritaria no meio da noite.

Como resultado, no dia seguinte o terceiro ano foi enviado ao prédio do cinema e ao invés da prova de geometria descritiva fomos submetidos a uma série de palestras dos oficiais, todos tentando minimizar a pressão que estávamos sofrendo e dar-nos algum alento de esperança. Tenha sido real, tenha sido apenas resultado de nossa percepção, o fato é que tenho a impressão de que as coisas seguiram em um ritmo mais aceitável.

Chegou finalmente o final de ano, as reprovações não foram tantas quanto eram esperadas e duzentos alunos se qualificaram para seguir para o CFPM. Mas como já dissemos, para alguns o encanto havia se rompido definitivamente e decidiram seguir outros caminhos.

Um deles era um colega de uma pequena localidade próxima a Barbacena, era um mineirinho típico, miúdo de corpo, olhos grandes e vivos que a tudo observavam e registravam, caladão fala mansa e arrastada cheia de “uais” e “sôs”, mas com um raciocínio ultra rápido e um sorriso enigmático sempre pregado ao rosto. Tinha um caminhar bamboleante típico dos matutos, pés bem abertos, tipo “dez para as duas sabe”? Devido as experiências negativas que já comentamos, havia se decidido por outra carreira, havendo até já prestado vestibular tendo sido aprovado, mas matreiro que era, decidiu aproveitar a oportunidade de conhecer Natal no RN gratuitamente. E assim após o carnaval se apresentou no Galeão para embarcar na nova aventura. Seu nome até hoje não sei, era conhecido pelo cômico nome de sua cidadezinha e para evitar-lhe qualquer constrangimento irei aqui chama-lo de “Little Hangover”.

A fase denominada de pré-solo da instrução aérea é o primeiro contato do aluno com seu instrutor, esses ainda jovens tenentes, comportavam-se muito mais como cadetes veteranos, aplicando e deliciando-se ao aplicar trotes, do que como mestres. Essa fase é também o primeiro contato que o aluno tem com o avião e a FAB propicia pouco tempo, entre seis e oito horas, para que o aluno esteja apto a voar só com um mínimo de segurança, ou seja: capaz de decolar, voar por uma hora e pousar o avião de forma tão segura que permita ao avião uma nova decolagem sem necessidade de nenhuma intervenção mecânica.

Essa é a fase onde mais alunos são desligados, diariamente três ou quatro retornavam abatidos para suas casas. Num espaço de tempo muito curto éramos obrigados a ser capazes de manter o avião em voo reto em uma altitude constante, saber os procedimentos adotados em caso de pane de motor, saber entrar e sair de um parafuso, entre outras manobras mais simples.

Uma das manobras mais exigidas, em virtude de sua importância para a segurança de voo, eram os procedimentos em caso de pane de motor. O exercício era aplicado de surpresa pelo instrutor, normalmente quando estávamos entre quatro mil e quinhentos e cinco mil pés de altitude, eles cortavam o motor, mantendo-o em marcha lenta e, com a cara mais “blasé” do mundo diziam: — “pane”, então tínhamos de colocar o avião em atitude de modo a manter uma velocidade de planeio de oitenta milhas horárias, lembrando-se de usar o compensador para isso, procurar uma área possível para um pouso de emergência, identificar a direção do vento, entre outras coisinhas menos importantes, mas não menos estafantes.

Todos viviam sobre intensa pressão, era como diziam os instrutores: — “Vamos sacudi-los e joga-los na parede, quem não miar, não é gato...” e o resultado era subentendido. O prazer dos instrutores era manter-nos sob pressão durante todo o tempo de voo, eram gritos e impropérios aos borbotões, que somados à dificuldade em dominar o avião, tornava o clima irrespirável para todos nós. Todos menos Little Hangover que estava ali apenas a passeio.

O instrutor de Little Hangover não era diferente dos demais, garotão carioca, cheio de malandragem, gírias e trejeitos, se matava para tirá-lo do sério, sem conseguir. Certo dia estava Little Hangover desfrutando das maravilhas da paisagem nordestina quando, sem aviso, o instrutor corta o motor e diz pane, ficando a fita-lo na esperança de pegá-lo em algum erro para então tripudiar, mas qual não foi sua surpresa quando Little Hangover, sem demonstrar nenhuma preocupação, leva a mão ao manete e torna a acelerar o avião dizendo: — “Que nada! Eu sei que o avião tá bão”. Desconcertado com a atitude o instrutor insiste cortando o motor e novamente ouve: — “Para com isso sô, eu sei que o avião tá bão”.

Ainda sem acreditar com o que se passava com aquele aluno o instrutor decidiu fazer com que fizesse um parafuso, deu a ordem ao que respondeu Little Hangover: — “Eu não, tá bobo sô”.

Cabe aqui um parêntese, o avião de treinamento primário T-23 Uirapuru, não era muito chegado a “parafusos”, lendas internas diziam até que, durante seu desenvolvimento dois pilotos de testes haviam perdido a vida tentando essa manobra. Para corrigir esse problema havia sido desenvolvida uma aleta que corria ao longo de toda parte inferior da fuselagem do avião. Algo que dava maior credibilidade a essas lendas era a proibição peremptória de executar parafusos em voos solos, em virtude do deslocamento do centro de gravidade do avião. Proibição essa que não impediu que alguns colegas testassem sua veracidade.

Já à beira de um colapso nervoso o instrutor pega o avião e abruptamente o coloca na posição vertical até o pré-stol, quando o avião perde sua capacidade de sustentação aerodinâmica, com o avião tremendo, o instrutor aplica todo o pedal do leme esquerdo e cola o manche ao peito, o T-23 ainda estremece por alguns segundos e, com um forte giro, entre em parafuso. Com o nariz apontado para o solo e o avião girando loucamente o instrutor põem-se a berrar: — “Recupera essa porra, Recupera essa porra”. Com o chão se aproximando rapidamente na maior calma Little Hangover lhe responde: — “Eu não, ocê que pois, ocê que tira, uai”.

Com o chão chegando a rodar loucamente e aquele mineirinho, impávido, o instrutor, em uma última tentativa apelou: — “Se você não tirar essa merda do parafuso, você vai morrer!!!”; ao que Little Hangover tranquilamente respondeu: — “O Senhor também vai, sô!” O pobre instrutor não teve outra saída senão, in extremis, no último momento, recuperar o avião antes que esse se chocasse contra o solo pátrio e Little Hangover ali a seu lado, desligadão. Olhando para frente, como se nada estivesse acontecendo. Irado o instrutor tomou o avião e rapidamente rumou de volta à base.

Naquele dia eu retornei do voo de instrução um pouco depois de Little Hangover e, sem nada entender, o vi com a cara voltada para a parede da sala de briefing, com os braços em cruz, repetindo em vos alta: — “Eu não devo tentar matar meu instrutor”. E esse, ainda esbaforido explicava aos demais instrutores o estranho comportamento do aluno.


Little
Hangover, ainda continuou a enlouquecer seu instrutor até que, já prestes a iniciar o treinamento no jato T-37 C solicitou desligamento para não ter que voar com um instrutor carrasco. Mas creio também que já era tempo de ele voltar para casa e começar as aulas em sua nova carreira.